"Alguém que se conhece, pode se estimar o mínimo que seja?"
Dostoiévski
Adornos
Arvoreiro era a loja mais famosa da cidade. Constituída pelos membros de uma só família, cujo sobrenome foi dado ao estabelecimento, vendia peças para decoração. Dom, membro mais novo dos Arvoreiros, aprendeu desde menino a arte da marcenaria. Junto a seu pai e irmãos desenvolveu um talento: o trabalho com portas. Os adornos em alto-relevo e os desenhos em superfície transformavam um simples e funcional pedaço de madeira em uma obra-prima. Aqui e ali, fosse na praça, na casa da esquina ou na sala do prefeito havia uma porta feita por ele.
O talento do marceneiro se espalhou. Alcançou as redondezas. Não durou muito, e saiu em rede nacional de televisão. O rapaz ficou conhecido, famoso. De simples capricho para decoração, as portas passaram a artigos de luxo. Em grandes eventos, as obras magistrais e imponentes compunham o ambiente. Com o alcance da fama a família mudou-se para uma cidade maior. A crescente disponibilidade econômica deu requinte ao dia a dia dos parentes. Agora com uma clientela mais exigente e superior, o grande artista destinou seu trabalho apenas a salões festivos.
– Não, senhora. Os produtos com assinatura do senhor Dom são destinados a portas de entrada.- respondeu a atendente para alguém do outro lado da linha.
Embora os pedidos aumentassem na mesma proporção da notoriedade, o princípio permaneceu.
– Não faço! Trabalho com portas de entrada e ponto. É suficiente!- disse Dom, numa discussão familiar acerca de dinheiro.
Inflexível à mudança de opinião, venceu a todos pelo cansaço. Aos poucos, a exigência dos parentes caiu no esquecimento, acabaram convencidos. Afinal, dinheiro não faltava, discutiam entre si:
– Tudo bem. Já temos o bastante.
Por conta de seus setenta anos, Dom resolveu prestigiar o lugar onde nasceu. Foram muitos os preparativos. A cidade se mobilizou para celebrar o grande acontecimento. Testemunhas lembram do ocorrido com espanto. Falam em fogos, gritos de alegria e lágrimas de satisfação. O pequeno grupo de pessoas, cuja vida tinha por essência o pacato, ressurgiu como um grupo de almas retornando da escuridão para a luz. Crianças, idosos, jovens e adultos foram arrebatados por um sentimento, até então, esquecido. A tão conhecida família Arvoreiro trouxe, na figura de Dom, a alegria. O aniversário era do artista, mas o presente quem ganhava era o povo. Para a surpresa de todos, um monumento foi erguido na entrada da cidade. Uma imensa porta com traços em ouro, além de máscaras e faces sorridentes, de olhos em desespero e com marcas suaves de raiva esculpidas. Dentre todas as formas que preenchiam a superfície marrom, havia no centro algo escrito. Em linhas douradas, o sol refletia a mensagem:
“A beleza da entrada convence o mais astuto viajante. Quanto maior o brilho da superfície, menos vista a escuridão que há por dentro.”
Maravilhado, o povo aplaudiu. Dizem que ainda hoje a escrita pode ser vista, de longe.
Ana de Alexandria