quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018


"Quantas vezes no deserto o provocaram e na solidão o afligiram."  Salmos 77:40



                         



      Agnes 


     A abertura era pequena. Tinha a forma de uma gota. A inquietação transcorria na oposição: respiração ofegante e tremor abaixo dos ossos. O lençol caiu. 
     Revelou as costas nua que mexia com uma harmonia leve, mas profunda e cheia de significado. Os dedos dos pés em cima da cama reluziam o cor-de-rosa resultante da pressão que a pele exercia na alça da cama e na derme de tom destoante. O som pausado, sufocante, juntava-se aos corpos contorcidos, dançantes na fresta. Pingavam formas e gestos. 
     Ela sentia, na retina, o gozo da sua ama sob aqueles lençóis recém trocados. 

sábado, 23 de agosto de 2014




"Alguém que se conhece, pode se estimar o mínimo que seja?"
Dostoiévski




Adornos 


    Arvoreiro era a loja mais famosa da cidade. Constituída pelos membros de uma só família, cujo sobrenome foi dado ao estabelecimento, vendia peças para decoração. Dom, membro mais novo dos Arvoreiros, aprendeu desde menino a arte da marcenaria. Junto a seu pai e irmãos desenvolveu um talento: o trabalho com portas. Os adornos em alto-relevo e os desenhos em superfície transformavam um simples e funcional pedaço de madeira em uma obra-prima. Aqui e ali, fosse na praça, na casa da esquina ou na sala do prefeito havia uma porta feita por ele. 
     O talento do marceneiro se espalhou. Alcançou as redondezas. Não durou muito, e saiu em rede nacional de televisão. O rapaz ficou conhecido, famoso. De simples capricho para decoração, as portas passaram a artigos de luxo. Em grandes eventos, as obras magistrais e imponentes compunham o ambiente. Com o alcance da fama a família mudou-se para uma cidade maior. A crescente disponibilidade econômica deu requinte ao dia a dia dos parentes. Agora com uma clientela mais exigente e superior, o grande artista destinou seu trabalho apenas a salões festivos.
 – Não, senhora. Os produtos com assinatura do senhor Dom são destinados a portas de entrada.- respondeu a atendente para alguém do outro lado da linha.
 Embora os pedidos aumentassem na mesma proporção da notoriedade, o princípio permaneceu.
 – Não faço! Trabalho com portas de entrada e ponto. É suficiente!- disse Dom, numa discussão familiar acerca de dinheiro. Inflexível à mudança de opinião, venceu a todos pelo cansaço. Aos poucos, a exigência dos parentes caiu no esquecimento, acabaram convencidos. Afinal, dinheiro não faltava, discutiam entre si:
 – Tudo bem. Já temos o bastante. 
     Por conta de seus setenta anos, Dom resolveu prestigiar o lugar onde nasceu. Foram muitos os preparativos. A cidade se mobilizou para celebrar o grande acontecimento. Testemunhas lembram do ocorrido com espanto. Falam em fogos, gritos de alegria e lágrimas de satisfação. O pequeno grupo de pessoas, cuja vida tinha por essência o pacato, ressurgiu como um grupo de almas retornando da escuridão para a luz. Crianças, idosos, jovens e adultos foram arrebatados por um sentimento, até então, esquecido. A tão conhecida família Arvoreiro trouxe, na figura de Dom, a alegria. O aniversário era do artista, mas o presente quem ganhava era o povo. Para a surpresa de todos, um monumento foi erguido na entrada da cidade. Uma imensa porta com traços em ouro, além de máscaras e faces sorridentes, de olhos em desespero e com marcas suaves de raiva esculpidas. Dentre todas as formas que preenchiam a superfície marrom, havia no centro algo escrito. Em linhas douradas, o sol refletia a mensagem: 
 “A beleza da entrada convence o mais astuto viajante. Quanto maior o brilho da superfície, menos vista a escuridão que há por dentro.” 
     Maravilhado, o povo aplaudiu. Dizem que ainda hoje a escrita pode ser vista, de longe.

   Ana de Alexandria

domingo, 17 de agosto de 2014

 "O que é o homem na natureza? Um nada em relação ao infinito, um tudo em relação ao nada, um ponto a meio entre nada e tudo." Blaise Pascal



                                  A casa                                  

    Nasceu junto com a casa. Aria, sua mãe, dava a luz, diziam, no exato momento do último tijolo. Nascia um lar. Nascia Luís. Uma casa grande, ao pé do morro. Com portas largas e espaços livres. Cada cômodo possuía uma identidade, como se a anima do seu mais fiel ocupante assumisse as paredes do lugar. A cozinha com seus ares de comida fresca, honesta e simples lembrava Dona Aria. O quarto dos pais decorado por uma cama simples alguns móveis antigos e uma desordem estranha e calma, espelhava a personalidade dominante do pai, Seu José.

    O mais recente membro da família crescia. Durante anos, Luís unia a todos em momentos sublimes. Os avós, tios e amigos tinham cada qual, a seu modo, um momento de importância diante daquela criança sorridente.

Chegada a adolescência era rapaz de alguns amigos, com gostos singelos e de poucas palavras. Com o passar do tempo a casa era transformada, pouco a pouco, em um lugar escuro. O ar já não entrava com tanta facilidade. As portas de comprimento extenso foram trocadas por outras de menor tamanho. Os espaços livres foram substituídos por entulhos que brotavam do quarto adolescente e se estendiam pela sala, cozinha e quarto paterno. Dona Aria envelhecia e lembrava com saudades dos pratos que fazia e dos elogios que deles brotavam. Seu José não era mais o dono da desordem de seu quarto. Com os seus sessenta anos, anos de muito trabalho, e com pouca saúde não achava nem a si dentro do que antes era seu reino.

    Luís, já adulto, viu a família deixá-lo. Foram-se os avós, os tios e os pais. Permaneceu no lar. Como herança, a casa o pertencia. Com seus quarenta e poucos anos era um solteirão. Mantinha as mesmas amizades da adolescência, com poucos agregados. Agora, como que por decreto, todos os cômodos estavam repletos dele, de Luís. Entulhos pendiam do armário, saltavam pela casa detalhes do dono. As paredes com uma textura escura refletia a alma amena do seu senhor. Há tempos não chovia na cidade. Era inverno e as chuvas estavam intensas. A noite, durante o banho, concentrado no som de sua voz, que ecoava pelos cômodos da casa, Luís não percebe o estrondo guiado pela batida da mistura de água e lama que invadiam as paredes, molhavam e retorciam os móveis. Envolvido pelo ruído da própria voz, Luís é atingido pela enxurrada que banhava a casa. Apavorado, tenta escapar, mas é soterrado pelas paredes.

    A cidade ficou repleta de restos, árvores e chuva. Algumas casas foram atingidas. Na contagem das perdas houve muitos danos materiais, mas apenas uma morte. Luís Onorato foi o único falecido daquele desastre. Amigos, os poucos que tinha, comentavam a morte.
– Morrer desse jeito, coisa triste! -dizia um.
– E foi o único de tanta gente, nunca vi isso. É muito azar!- complementava outro espantado.
    Com expressão calma e olhar fixo, um acrescenta:
– Foi a morte mais estranha que já vi.
Respirou fundo e concluiu:
–Morreu soterrado por si mesmo.


Ana de Alexandria